domingo, 1 de março de 2009

O LUGARZINHO NO CÉU

O texto que serve de base a este espectáculo foi criado há alguns anos, e correspondeu a um desafio que o Teatro Mínimo me lançou, de escrever uma peça de teatro para o grupo. Na altura, quando estava à procura de tema, uma reportagem do Público sobre os arrumadores do Porto atirou-me de imediato para esta realidade precária dos que vivem na rua. Foi a partir dela que construí a sinopse, o desenho dos personagens e uma cena dialogada. Era esse o compromisso com o grupo: até esses materiais serem aceites o convite para escrever a peça poderia voltar à estaca zero. A partir daí eu poderia contar já com a cumplicidade do grupo. E foi assim que nos juntámos a uma mesa de trabalho o José Boavida, o Pedro Alpiarça, o Vicente Morais e a Elisabete Piecho. Começámos a ler os textos e os actores iam sugerindo ideias, ambientes. Lembro-me claramente de que a conversa sobre as casas foi uma proposta do Pedro Alpiarça, a quem estaria entregue o Casimiro. Um dia chegou ao pé de mim e contou-me que tinha estado a pensar no personagem e que o imaginara a olhar para dentro das casas dos outros, do lado de fora, a tentar perceber o que estava lá dentro. Tal e qual como quando vamos numa auto-estrada e vemos as luzes dentro das casas. Ou da ideia do Boavida de um ancoradouro perto do rio, cuja concretização cenográfica foi sendo suprimida mas que deixou, até para a sonoplastia, a ideia da criação de um ambiente ribeirinho.

Essa é, de uma forma resumida, a arqueologia do espectáculo, até ao momento em que, ao saber que a Guilhas ia mudar de casa, pensei que montar "O Lugarzinho no Céu" seria uma espécie de despedida final que eu queria fazer ao Pedro Alpiarça. É claro que para isso pesou o facto não só do Altacena ter as condições para a montagem do espectáculo, também de ser um grupo que estava unido por especiais laços de afecto e carinho ao Pedro.

Depois do texto ter sido distribuído aos actores em Julho, começámos, de forma regular, a trabalhar no espectáculo a partir de Outubro, com data prevista de estreia para o começo de Janeiro. A visão final do espectáculo, para além daqueles compromissos que temos sempre de fazer com a realidade, reflecte, como espero que seja perceptível para o espectador, uma tentativa de anular algumas das convenções teatrais que se instalam na percepção do espectador antes mesmo dele se sentar na sala de teatro. O lugar onde estão as coisas. O palco esburacado. O que se vê e o que não se vê. O teatro é, desde os tempos mais remotos, o lugar de onde se vê mas isso não quer dizer, que o teatro também possa ser o lugar de onde não se vê. O teatro, esse jogo de esconde-esconde, onde mostramos e escondemos de modo a fazer evoluir a teia narrativa, pode ser uma experiência sobre a comunicação. O espectador pode não ver tudo, pode não ouvir tudo, pode não perceber tudo. O que é que é perceber? Várias vezes quando estou sentado na sala de ensaio a ouvir o telefonema do Mirov em russo, por dentro da minha incapacidade de decifrar as palavras, apercebo-me de muitas coisas não visíveis.
Depois deste trabalho sobre as convenções teatrais, tive mesmo de lutar com o autor, expurgando a representação de adornos estilísticos, trabalhando sobre a interioridade. Era o mais importante para mim e é com alegria que posso dizer que antes do espectáculo estrear ele já aconteceu para mim na forma como aquelas cinco pessoas se dedicaram a viver os seus personagens, dando-lhes vida. Não escondo que fui, durante anos fundamentais da minha formação teatral, influenciado por muitas daquelas correntes que se dedicaram a trabalhar sobre a não teatralidade do teatro e que ainda hoje sou - agora muitas vezes de uma forma subconsciente - condicionado por esse percurso.

O teatro é, para mim – e este espectáculo tenta ser tributário de uma determinada ideia de teatro - um momento ético em que alguns de nós dedicam algum tempo e disponibilidade para se colocarem no lugar do outro. Fazem-no os actores, fá-lo depois o público. Fazem-no com o que sabem mas especialmente com o que não sabem. Para mim o mais interessante do processo de criação deste espectáculo foi quando de repente o Fidélio, a Anunciada, o Casimiro e o Mirov irrompiam do corpo e da alma dos actores. O teatro é um choque no presente. Foi também por isso que desafiei o Zé Carlos Pontes para tocar ao vivo. Ou que confrontei o Filipe Luz com a representação de um texto em cirílico. Porque, e isto é para mim uma das mais belas metáforas do teatro, da arte teatral, naquele caso era preciso que não pudéssemos entender o que o Mirov dizia para que o pudéssemos compreender melhor, na sua incomunicabilidade, na sua solidão.
Joaquim Paulo Nogueira